segunda-feira, 5 de abril de 2010

Minha Vida na florida

Faltavam poucos minutos para a hora de comecar a dirigir na direcao do call center onde estava trabalhando. Estava num pe e noutro, preocupada com a possibilidade da unica estrada que me levaria para fora da Florida ficar congestionada demais e tornar uma fuga a tempo impossivel.

Liguei mais uma vez a televisao e vi algumas autoridades do meu condado aconselhando quem tinha intencao de viajar a sair imediatamente, ou ficaria enganchado na estrada e seria pego pelo grande mostro que a natureza estava preparando para nos atacar na manha seguinte.

Ainda dirigi ate o trabalho e perguntei se se os diretores ja haviam liberado os funcionarios, pois ja havia ate ordem de evacuacao da area. Responderam que ainda nao, e que todos tinham que ficar a postos ate segunda odem. Nao contei conversa. Fui ao escritorio do chefe do centro e falei de minha sindrome do panico e quao terrivel seria para mim ficar presa na area do furacao, principalmente pela consequente falta de eletricidade que semrpe vinha depois. As lagrimas comecaram a cair e uma senhora que havia aparecido por la, nao sei de que departamento, me disse que eu poderia ir embora.

Voltei para casa, mas antes fui ao computador e fiz uma reserva de uma van pela National. Como funcionaria, pagaria bem barato. Tinha que levar meus quadros e documentos importantes comigo. Liguei para um amigo que morava em Washington e ele ofereceu para guardar meus quadros em um deposito de sua companhia. Liguei para amigos que moravam em North Carolina, que ficava no caminho, combinando dar uma parada para ve-los, comer um pouco, e descnsar por uma ou duas horas, se necessario.

Para sair da zona de perigo, teria dirigir pelo menos ate Washinton DC, pois, se a tempestade se desviasse nas proximas horas, poderia atingir qualquer estado por onde eu passaria ate chegar na Virginia. Nao adiantaria entrar para mais longe da costa, pois a Florida e uma peninsula muito longa e a unica forma de sair dela era dirigindo para o Norte, no sentido do comprimento do estado. O interior e o oeste da peninsula estava correndo tanto perigo quanto o litoral leste. A TV mostrava um circulo de nuvens de mais de cem milhas de diametro, o que cobriaria o sul da Florida inteiro se nao se desviasse para o norte ou para o sul antes de chegar no alvo atual, que seria exatamente Boca Raton, onde estavamos. No momento, era categoria 3. Estava quase nas Bahamas e ainda iria se alimentar de muitas aguas quentes antes de chegar na costa da Florida.

Liguei para uma amiga que trabalhava com limpesa de casas e pedi para trabalhar para mim, ajudando a separar as coisas e carregar a van. Ja eram mais ou menos as vinte horas quando comecei minha jornada de 22 horas. Nao sabia como iria aguentar ficar acordada dirigindo por tanto tempo, mas a nocao de que tinha uma ameaca tao grande atras de mim naquela estrada, me dava energia. Era adrenalina pura.

Pouco depois, ja na area norte do contado de Palm Beach, o trafego comecafa a engrossar. Cada saida da 95 que dava para as cidades estava congestionada, com os carros entrando par ase juntar ao comboio.

Quando parava nos rest stops, uma especie de parada para descanso que tem ao longo das estradas principais dos Estados Unidos, eu notava que a maioria dos carros levava familias com seus animais domesticos. Lembrei de minha vizinha, que optou por ficar no apartamento e nao ir para um abrigo, pois os abrigos nao aceitavam animais e ela nao queria abandonar seu cachorro sozinho em casa. Tambem notei que cada rest stop tinha um ou dois patrulheiros ajudando com a seguranca e dando informacoes. Uma das perguntas mais frequentes era onde poderiamos encontrar um posto com gasolina.

A sorte era que a National me entregou a van com o tanque cheio, pois todos os postos de todas as saidas, ate chegar na Georgia, estavam sem gasolina. Quando um furacao se prepara para atacar, uma das primeiras coisas que as autoridades fazem e fechar os portos, que e por onde chega a gasolina. Ajudou tambem o fato de que a van era bem novinha e andava quase so com o cheiro do combustivel. Pude andar pelo estacionamento abrindo os carros e olhando a milhagem de cada um e este tinha somente mil kilometros rodados. Por isso mesmo havia resolvido alugar com a National em vez da Alamo, que tambem pertencia aos meus patroes.

De radio ligado, telefone celular no banco do passageiro, uma garrafa de diet coke, e um pacote grande de M&Ms, eu ia me mantendo alerta. Era uma receita de cafeina e acucar, regada pela adrenalina que as noticias do radio traziam. Cada vez que uma radio ficava muito fraca, eu buscava outra, pois sempre havia uma cidade grande se aproximando e outra se distanciando. O assunto de todas as radios era a cobertura do furacao. Noite adentro e ninguem podia ainda dizer qual era o alvo do gigante. A medida que me aproximava da Georgia, ia pegando sinais das radios de Savana. Eles estavam se preparando tambem, pois estavam na mira do furacao, caso ele se desviasse da Florida. Falaram que o governador da Georgia havia decretado estado e emergencia, para que os hoteis do estado nao pudessem aumentar os precos para os floridianos que chegavam aos milhares.

Continuei dirigindo, somente parando para colocar gasolina e comer alguma coisa, ate chegar em Fayetteville, em na Carolina do Norte. Ja era de manha quando cheguei na casa de Rose, minha velha amiga. Mal pude ve-la, pois ela estava saindo para o trabalho, mas pude conhecer seus filhos, inclusive a mais velha, que ela havia levado para os Estados Unidos pelo Mexico, em uma grande aventura, anos atras.

Pedi para cochilar um pouco no quarto e dormi por umas duas horas. Precisava voltar para a estrada, pois tinha que entregar a van no aeroporto de washington antes de completar um dia de aluguel, para troca-la por um carro mais barato. La, Jonathan me encontraria e colocariamos os quadros na van dele. A partir dai, eu nao precisaria mais de um carro grande. Fiquei com um Buick Regal, que so devolvi uma semana depois na Florida. Jonathan levou meus quadros e eu fui me encontrar com Daniel. Se toda tragedia tiver mesmo um lado positivo, este foi o lado positivo de minha aventura: conviver com meu filhao.

A Guigui nao estava mais morando na area de Washington, assim, nao pude ve-la como fazia quando ia la. Depois que Daniel fora morar com o pai, eu usava qualquer desculpa para fazer viagens de negocios a Wahshington. Reativei meus contatos antigos de la e convenci a galeria que me representava la a fazer exposicoes de eus quadros. Na verdade, tudo nos Estados Unidos gira em torno do imposto de renda. Muita gente paga prestacao da casa a vida inteira, pois o juro e todo descontado no imposto de renda, assim, nao e sempre vantagem comprar a vista. Os profissionais liberais podem descontar as despesas de qualquer viagem durante a qual facam qualquer contato profissional. Um amigo me contou que descontava ate as viagens que fazia para pescar, incluido hotel e comida. O truque que usava era parar para conversar com o dono de alguma loja que vendia material de pesca e tentava vender seguros ao cara. Pronto. A viagem ficava caracterizada como viagem de negocios.

Com o salario que recebia, mesmo vendendo quadros de vez em quando, nao conseguiria me dar ao luxo de ir visitar meus filhos, a nao ser que desenvolvesse negocios na area em que eles moravam, assim, podia descontar as despesas da viagem no imposto de renda. Eu realmente trabalhava durante essas viagens nos momentos em que os meninos estavam ou na escola ou no trabalho. Levava e trazia quadros para as galerias, frequentava vernissages de exposicoes, visitava compradores potenciais, artistas, e museus.

Meu acordo do divorcio dizia que quando Daniel tivesse 10 anos ele poderia ir morar com o pai, se quizesse. Eu nem pensava que isso iria acontecer um dia. Mal sabia eu que todas as vezes que ele ia visitar o pai nas ferias, Stuart dizia a ele que quando ele completasse aquela idade, teria que escolher onde morar. E logico que cobria o filho de conforto e diversoes, e ate certo luxo, durante as ferias. A escolha nao foi dificil para o menino. Nos viviamos muito apertados. O dinheiro mal dava para as despesas basicas de sobrevivencia. Quase nao sobrava para lazer. Alugar um filme no Bluckbusters era uma ocasiao especial.

Quando meu filho me disse que iria morar com o pai, eu senti uma pontada no peito. Parecia que tudo tinha ficado escuro e triste. Ele disse aquilo com tanto cuidado pedindo que eu nao ficasse triste, tao preocupado comigo, que a ultima coisa que eu queria naquele momento era enteistece-lo ou faze-lo sentir culpa ou pena de mim. Eu fiz um esforco par sorrir e mostrar entusiasmo com a decisao dele. Perguntei se era isso mesmo que ele queria, se estava certo disso, e ele disse que sim. Tudo na expressao dele e no tom de voz mostrava que ele estava me avisando, nao me perguntando. Estava decidido. Mesmo assim, eu ainda conversei com Guigui e perguntei a opiniao dela. Ela disse que eu deveria deixa-lo ir, pois ele iria entrar em uma fase na qual precisaria mais do modelo do pai do que da mae. Ela achava tambem que eu o tratava como um bebe e, se ele ficasse comigo, se tornaria um “mamma’s boy”, um tipo de filhinho da mamae, um adulto sem capacidade de ser independente.

Lembro o dia em que eu, a Guigui, e o namorado dela fomos leva-lo ao aeroporto para viajar para Washington DC. Ate o momento em que ele entrou no portao de embarque, eu segurei as lagrimas, mas quando o vi caminhando de costas, rumo a um futuro que incluia um cotidiano do qual eu nao iria fazer parte, eu me derreti em um pranto tao doloroso, mas silencioso. Nao queria contagiar a Guigui com minha tristeza.

Nos anos seguintes, eu me concentrei em viajar muito para fazer retratos no Brasil. O mercado nos Estados Unidos estava pessimo e a classe media alta do Brasil estava com muito poder aquisitivo. A Guigui foi morar com o namorado e eu nao tinha que me preocupar mais em deixar uma pessoa adulta para supervisiona-la enquanto eu viajava.

La estava eu, parando o carro na frente da casa de meu ex-marido para pegar Daniel e irmos jantar juntos. Estava quase morta de sono. Tinha dirigido por mais de 22 horas, com um intervalo de duas horas de sono.

A essas alturas, ja sabia da noticia de que o furacao havia ficado parado em cima do mar, entre a Florida e Bahamas. Ficou la por um tempao e depois rumou noroeste, atingindo a parte norte do contado de Palm beach, com o olho na cidade de Vero Beach. Sabia que a coisa foi feia e que havia atingido tambem Boca Raton, mas nao de cheio. Era muito grande mesmo.

O call center ficou fechado por varios dias e eu ficava de olho nas noticias e ligando para as autoridades da Florida para saber quando poderia voltar. Vi o governador Jeb Bush na televisao pedindo aos que tivessam saido da Florida para ficarem onde estavam e esperar mais, pois sua volta somente iria dificultar os trabalhos de recuperacao e salvamento. Liguei para o call center me disseram que ja estava aberto e que todo mundo ja havia voltado e so faltava eu. Senti uma ponta de critica na voz dele e decidi voltar. Era uma funcionaria exemplar e morria de medo de ficar com uma ficha ruim. Alem do mais, ja havia perdido varios dias de salario. Nao poderia me dar ao luxo de perder mais ainda.

A volta foi um pouco mais tranquila. Pude parar para dormir em Raleigh, capital da Carolina do Norte, onde fiquei com Marta, minha velha amiga dos tempos do Panama. Ela foi tambem minha primeira cliente de retrato no panama. A Marta, que era de Honduras, havia se mudado para os Estados Unidos e estava morando em Raleigh. Ela era muito carinhosa e nos nos adoravamos. Quando sai de Raleigh, uma hora depois estava de novo em Fayetteville, onde a Rose estava me esperando na base de Fort Bragg, para que eu falasse aos militares, seus alunos de portugues. Demorei muito e os estudantes ja haviam saido, exceto dois, que queriam comprar minhas reproducoes. Ainda hoje um deles se comunica comigo pela Internet.

Voltei para a estrada e passei a enfrentar algumas das situacoes mais perigosas de minha vida. O tempo estava um pouco louco. O furacao havia deixado atras dele um rastro de tempestades e tornados que se alastravam por toda a extensao da estrada 95, por onde eu iria passar, ate chegar na Florida. Passava pouco tempo sem uma tempestade ou sem noticias de tornados. O mais estarrecedor foi quando eu estava ha mais ou menos uma hora de Fayetteville, perto da fronteira com a Carolina do Sul. De repente, o radio comecou a soar o sinal de emergencia. E um sinal estridente que eu ouvia de vez em quando, mas logo depois do sinal sempre vinha uma voz dizendo que aquilo era um teste do serviso de emergencia do governo. Desta vez, a voz nao soou. Nao para dizer que era um teste. Uma voz veio para dizer que nada menos de tres tornados tinham sido vistos na area de Rayford. Quando olho para a placa verde grande pela qual estava pasando naquele mesmo momento, li: bem-vindo a Rayford.

Fiquei absolutamente apavorada, mas um instinto de sobrevivencia tomou conta da parte de meu cerebro que ainda tinhas resquicios de racionalidade. Olhei para todos os lados e vi que 380 graus do horizonte era simplesmente plano. A estrada corta as plantacoes de fumo da carolina do norte. Era tudo reto. Dava para ver, inclusive, o que parecia ser um dos tornados, descendo de uma nuvem negra. Ate a pouco tempo, havia uma calmaria, como se nenhum perigo pudesse existir ali. Nao sabia qual era a direcao do tornado, mas nao ia correr o risco de ser pega por ele. Vi um viaduto passando sogre a estrada mais na frente, e parei no acostamento em baixo dele, ficando com o carro bem grudado na parede do viaduto. Se o tornado viesse na minha direcao, talvez essa parede me protegesse.

Fiquei ali parada, ouvindo o radio, por pelo menos uma hora, ate que tive ccoragem de voltar a estrada. A coisa havia desaparecido. Ou foi em outra direcao, ou se dissipou.

Umas duas horas depois, parei em South of The Border, na fronteira da Carolina do Norte com a Carolina do Sul. Sempre parava la, pois quando os meninos eram pequenos, eles adoravam parar nas lojas de la para comprar traques, chuvinhas, e outros fogos de artificio mais leves. Na Carolina do Norte esses produtos eram proibidos. Por isso mesmo, havia aquelas lojas la. A cidade simplesmente vivia da renda dos negocios que eram proibidos no estado vizinho ao norte. Havia muitos hoteis especializados em lua de mel, pois na Carolina do norte, havia um prazo bastante longo quando se pedia uma licensa de casamento. Os apaixonados apressados simplesmente cruzavam a fronteira e se casavam rapidinho, como em Las Vegas. O imposto estadual tambem era mais baixo na Carolina do Sul. A estrada que vinha do norte era cheia de outdoors sugerindo que os viajantes esperassem para dormirem nos hoteis de la, para pagar mais barato.

O que eu gostava mesmo de coprar naquelas lojas eram os brinquedos malucos. Entre outras maluquices, comprei um coco de borracha que era uma imitacao perfeita e costumava enganar as pessoas, colocando a coisa em um canto da casa ou do negocio deles, e depois apontava com nojo. Gargalhadas sempre se seguiam ao constrangimento inicial.

A medida em quem me aproximava da Florida, as noticias de devastacao ficaram mais frequentes no radio. Eramm assustadoras, mas nada me preparou para o que vi ao me aproximar d condado de Palm Beach. Arvores imensas ainda estavam em parte da estrada, todos os outdoor e placas da estrada estavam nus.. Os que ainda estavm de pe, so tinham a moldura. Quando parava nos rest stops, nenhum deles tinha luz. Os banheiros estavam imundos e tinha mais guardas em cada um, todos eles com lanternas na mao, acompanhando as pessoas ate a porta dos banheiros. As pessoas estavam tristes, cabisbaixas, muitos deles pensando no que iriam encontrar ou nao encontrar quando chegassem em casa.

A ultima parada para gasolina havia sido em Jacksonville, no norte do estado. Tive que entrar na cidade e sair buscando um posto com gasolina. Encontrei um, mas em um bairro que parecia super perigoso. Nem sei como sai de la, pois me perdi e foi um sufoco para encontrar a 95 sem abrir a janela para perguntar a alguem na rua.

Quando cheguei na saida para Vero Beach, tentei sair da estrada para buscar um posto de gasolina, mas a estrada estava bloqueada por tanques do exercito. Um soldado veio falar comigo desconfiado e perguntou se eu morava ali. Eu disse que nao, e ele me disse que somente moradores poderiam entrar. Eu avisei que estava buscando gasolina e ele me disse algo como: boa sorte. Ainda bem que eu tinha posto combustivel em Jacksonville. Desta vez, o carro era menor que uma vam, mas nao gastava menos gasolina.

Todos os djs de minhas estacoes de radio favoritas, as de rock alternativo, estavam engajados em ajudar a populacao. Pessoas ligavam e pediam ou ofereciam ajuda. Um avisava que alguem que precisava de oxigenio ficou sem eletricidade, e outro ligava oferecendo um gerador. Quando ouvi uma mulher ligar para reclamar que nao havia vaga nos hoteis que tinham geradores e ela estava tendo que aguentar o calor sem ar condicionado, eu peguei meu celular e liguei para a radio e disse que achava um absurdo uma pessoa ligar para fazer uma reclamacao tao banal. Eu lembrei a ela que a maioria das pessoas no mundo nunca tiveram nem numa vao ter ar condicionado centrar em casa e que os hoteis estavam lotados com os funcionarios do governo que vieram para dar assistencia.

Consegui chegar em casa. Em nossa area, havia “bolsos” de destruicao, como arvores caidas, tetos esburacados, mas como se alguns tornados tivessem tocado o chao em varias areas, mas nao como um todo. A eletricidade ja havia voltado no meu apartamento, pois, por coincidencia, o edificio estava na mesma rede de um hospital e eles davam prioridade aquela rede eletrica. No dia seguinte fui para o trabalho e recomecei minha rotina. So era diferente porque todos tinham que ir para casa cedo, pois havia um toque de recolher. Qualquer pessoa pega na rua depois de uma certa hora era preso. Acho que isso era para evitar saques nas casas que ainda estavam abandonadas.